sábado, 3 de setembro de 2011

Prosa poética


                                         Inundação

                Há um rio que atravessa a casa. Esse rio, dizem, é o tempo. E as lembranças são peixes nadando ao invés da corrente. Acredito, sim, por educação. Mas não creio. Minhas lembranças são aves. A haver inundação é de céu, repleção de nuvem. Vos guio por esta nuvem, minha lembrança.
                A casa , aquela casa nossa, era morada mais da noite que do dia. Estranho, dirão. Noite e dia são metades, folha e verso? Como podiam o claro e o escuro repartir-se em desigual? Explico. Bastava que a voz de minha mãe em canto se escutasse para que, no mais lúcido meio-dia, se fechasse a noite. Lá fora a chuva sonhava, tamborileira. E nós éramos meninos para sempre.
                Certa vez, porém, de nossa mãe escutamos o pranto. Era um choro delgadinho, um fio de água, um chilrear de morcego. Mão em mão, ficamos à porta do quarto dela. Nossos olhos boquiabertos. Ela só suspirou:
                —Vosso pai já não é meu.
                Apontou o armário e pediu que o abríssemos. A nossos olhos, bem para além do espanto, se revelaram os vestidos envelhecidos que meu pai    muito lhe ofertara. Bastou, porém, a brisa da porta se abrindo para que os vestidos  se desfizessem em pó e, como cinzas, se enevoassem pelo chão. Apenas os cabides balançavam, esqueletos sem corpo.
                E agora — disse a mãe—, olhem para estas cartas.
                Eram apaixonados bilhetes, antigos, que minha mãe conservava numa caixa. Mas agora os papéis estavam brancos, toda a tinta se desbotara.
                Ele foi. Tudo foi.
                Desde então, a mãe se recusou a deitar no leito. Dormia no chão. A ver se o rio do tempo a levava, numa dessas invisíveis enxurradas. Assim dizia, queixosa. Em poucos dias, se aparentou às sombras, desleixando todo seu volume.
                Quero perder todas as forças. Assim não tenho mais esperas.
                Durma na cama , mãe.
                Não quero. Que a cama é engolidora de saudade.
                E ela queria guardar aquela saudade. Como se aquela ausência fosse o único troféu de sua vida.
                Não tinham passado nem semanas desde que meu pai se volatizara quando, numa certa noite não me  desceu o sono. Eu estava pressentimental, incapaz de me guardar no leito. Fui ao quarto de meus pais. Minha mãe lá estava, envolta no lençol até a cabeça. Acordei-a. O seu rosto assomou à penumbra doce que pairava. Estava sorridente.
                —Não faça barulho, meu filho. Não acorde seu pai.
                —Meu pai?
                — Seu pai está aqui muito comigo.
                Levantou com cuidado de não  desalinhar o lençol. Como se ocultasse algo debaixo do pano. Foi à cozinha e serviu-se de água. Sentei-me com ela, na mesa onde se acumulavam as panelas do jantar.
                —Como eu o chamei, quer saber?
                Tinha sido o seu cantar. Que não tinha notado, porque o fizera em surdina. Mas ela cantara, sem parar, desde que ele saíra. E agora, olhando o chão da cozinha, ela dizia:
                —Talvez uma minha voz seja um pano, sim, um pano porque limpa o tempo.
                 No dia seguinte, a mãe cumpria a vontade de domingo, comparecida na igreja, seu magro joelho cumprimentando a terra. Sabendo que ela iria demorar eu voltei ao seu quarto e ali me deixei por um instante. A porta do armário escancarada deixava entrever as entranhas da sombra. Me aproximei. A surpresa me abalou: de novo se enfunavam os vestidos, cheios de formas e cores. De imediato, me virei a espreitar a caixa onde se guardavam as lembranças de namoro de meus pais. A tinta regressara ao papel, as cartas de meu velho pai se haviam recomposto? Mas não abri . Tive medo. Porque eu , secretamente, sabia a resposta.
                Saí no bico do pé, quando senti minha mãe entrando. E me esgueirei pelo quintal, deitando passo na estrada de areia . Ali me retive a contemplar a casa como que irrealizada em pintura. Entendi que por muita que fosse a estrada eu nunca ficaria longe daquele lugar. Nesse instante, escutei o canto doce de minha mãe. Foi quando eu vi a casa esmorecer, engolida por um rio que tudo inundava.

  COUTO, Mia. O fio das miçangas: contos. São Paulo : Companhia das Letras , 2009. p25-27.

Mia Couto (1955) é prosador e poeta moçambicano, muito conhecido e premiado no mundo da língua portuguesa. Este conto é um belo exemplo de prosa poética  a partir da recriação da realidade                           

Um comentário:

  1. Que linda essa poesia, não conhecia o poeta Mia Couto, vou procurar saber mais. Parabéns pela postagem.
    Uma dica muito boa para você, entre nesse site e faça um cadastro http://www.dihitt.com.br/, é um site onde você divulga seu blog, suas postagens gratuitamente e faz bastante amigos além de ser sério, tem muita gente maravilhosa lá.
    Seu blog não merece ficar escondido, e vc. precisa postar suas poesias amigo.
    Desculpe a minha "bicudice", mas é verdade.
    Um abraço.

    ResponderExcluir