quarta-feira, 31 de agosto de 2011



Ser feliz é reconhecer que vale a pena viver, apesar de todos os desafios, incompreensões e períodos de crise. Ser feliz é deixar de ser vítima dos problemas e tornar-se um autor da própria história. É atravessar desertos fora de si, mas ser capaz de encontrar um oásis no recôndito da sua alma. É agradecer a Deus a cada manhã pelo milagre da vida. Ser feliz é não ter medo dos próprios sentimentos. É saber falar de si mesmo. É ter coragem para ouvir um "não". É ter segurança para receber uma crítica, mesmo que injusta. Pedras no caminho? Guardo todas, um dia vou construir um castelo…"

                              Fernando Pessoa      In “A felicidade exige valentia”

quarta-feira, 24 de agosto de 2011

                                                        


                                     No Caminho, com Maiakovsk

                                                             Assim como a criança
humildemente afaga
a imagem do herói,
assim me aproximo de ti, Maiakóvski.

Não importa o que me possa acontecer
por andar ombro a ombro
com um poeta soviético.

Lendo teus versos,
aprendi a ter coragem.

Tu sabes,
conheces melhor do que eu
a velha história.

Na primeira noite eles se aproximam
e roubam uma flor
do nosso jardim.
E não dizemos nada.

Na segunda noite, já não se escondem:
pisam as flores,
matam nosso cão,
e não dizemos nada.

Até que um dia,
o mais frágil deles
entra sozinho em nossa casa,
rouba-nos a luz, e,
conhecendo nosso medo,
arranca-nos a voz da garganta.
E já não podemos dizer nada.

Nos dias que correm
a ninguém é dado
repousar a cabeça
alheia ao terror.

Os humildes baixam a cerviz;
e nós, que não temos pacto algum
com os senhores do mundo,
por temor nos calamos.

No silêncio de meu quarto
a ousadia me afogueia as faces
e eu fantasio um levante;
mas manhã,
diante do juiz,
talvez meus lábios
calem a verdade
como um foco de germes
capaz de me destruir.

Olho ao redor
e o que vejo
e acabo por repetir
são mentiras.

Mal sabe a criança dizer mãe
e a propaganda lhe destrói a consciência.
A mim, quase me arrastam
pela gola do paletó
à porta do templo
e me pedem que aguarde
até que a Democracia
se digne aparecer no balcão.

Mas eu sei,
porque não estou amedrontado
a ponto de cegar, que ela tem uma espada
a lhe espetar as costelas
e o riso que nos mostra
é uma tênue cortina
lançada sobre os arsenais.

Vamos ao campo
e não os vemos ao nosso lado,
no plantio.
Mas ao tempo da colheita
lá estão
e acabam por nos roubar
até o último grão de trigo.
Dizem-nos que de nós emana o poder
mas sempre o temos contra nós.

Dizem-nos que é preciso
defender nossos lares
mas se nos rebelamos contra a opressão
é sobre nós que marcham os soldados.

E por temor eu me calo,
por temor aceito a condição
de falso democrata
e rotulo meus gestos
com a palavra liberdade,
procurando, num sorriso,
esconder minha dor
diante de meus superiores.

Mas dentro de mim,
com a potência de um milhão de vozes,
o coração grita - MENTIRA!
                                                    
                                             Eduardo Alves da Costa
                                                                   
                                                        Paula Rodrigues

domingo, 21 de agosto de 2011


     Por um lindéssimo de segundo

       tudo em mim
anda a mil
      tudo assim
tudo por um fio
      tudo feito
tudo estivesse no cio
       tudo pisando macio
tudo psiu

        tudo em minha volta
anda às tontas
         como se as coisas
fossem todas
          afinal de contas

Paulo Leminski, Melhores Poemas. Global , 1996.


sábado, 20 de agosto de 2011

                                 



                                     Pausa

      Às sete horas o despertador tocou. Samuel saltou da cama, correu para o banheiro, fez a barba e lavou-se. Vestiu-se rapidamente e sem ruído. Estava na cozinha, preparando sanduíches, quando a mulher apareceu, bocejando:
      — Vais sair de novo, Samuel?
      Fez que sim com a cabeça. Embora jovem, tinha a fronte calva; mas as sobrancelhas eram espessas, a barba, embora recém feita, deixava ainda no rosto uma sombra azulada. O conjunto era uma máscara escura.
      — Todos os domingos tu sais cedo — observou a mulher com azedume na voz.
      — Temos muito trabalho no escritório — disse o marido, secamente.
      Ela olhou os sanduíches:
      — Por que não vens almoçar?
      — Já te disse: muito trabalho. Não há tempo. Levo um lanche.
      A mulher coçava a axila esquerda. Antes que voltasse à carga, Samuel pegou o chapéu:
      — Volto de noite.
      As ruas ainda estavam úmidas de cerração. Samuel tirou o carro da garagem. Guiava vagarosamente, ao longo do cais, olhando os guindastes, as barcaças atracadas.
      Estacionou o carro numa travessa quieta. Com o pacote de sanduíches debaixo do braço, caminhou apressadamente duas quadras.
      Deteve-se ao chegar a um hotel pequeno e sujo. Olhou para os lados e entrou furtivamente. Bateu com as chaves do carro no balcão, acordando um homenzinho que dormia sentado numa poltrona rasgada. Era o gerente. Esfregando os olhos, pôs-se de pé.
      — Ah! Seu Isidoro! Chegou mais cedo hoje. Friozinho bom este, não é? A gente...
      — Estou com pressa, seu Raul! — atalhou Samuel.
      — Está bem, não vou atrapalhar. O de sempre. — Estendeu a
chave. Samuel subiu quatro lançes de uma escada vacilante.
Ao chegar ao último andar, duas mulheres gordas, de chambre
floreado, olharam-no com curiosidade:
      — Aqui, meu bem! — uma gritou, e riu: um cacarejo curto.
      Ofegante, Samuel entrou no quarto e fechou a porta à chave. Era um aposento pequeno: uma cama de casal, um guarda roupa
De pinho; a um canto, uma bacia cheia d'água, sobre um tripé. Samuel correu as cortinas esfarrapadas, tirou do bolso um despertador de viagem, deu corda e colocou-o na mesinha de cabeceira. Puxou a colcha e examinou os lençóis com o cenho franzido; com um suspiro, tirou o casaco e os sapatos, afrouxou a gravata. Sentado na cama, comeu vorazmente quatro sanduíches. Limpou os dedos no papel de embrulho, deitou-se e fechou os olhos.   Dormir.
      Em pouco, dormia. Lá embaixo, a cidade começava a mover-se: os automóveis buzinando, os jornaleiros gritando, os sons longínquos.
      Um raio de sol filtrou-se pela cortina, estampou um círculo luminoso no chão carcomido. Samuel dormia; sonhava. Nu, corria por uma planície imensa, perseguido por índio montado a cavalo. No quarto abafado ressoava o galope. No planalto da testa, nas colinas do ventre, no vale entre as pernas, corriam. Samuel mexia-se e resmungava. Às duas e meia da tarde sentiu uma dor lancinante nas costas. Sentou-se na cama, os olhos esbugalhados: o índio acabava de trespassá-lo com a lança. Esvaindo-se em sangue, molhado de suor, Samuel tombou lentamente; ouviu o apito soturno de um vapor. Depois, silêncio.
Às sete horas o despertador tocou. Samuel saltou da cama, correu para a bacia, lavou-se. Vestiu-se rapidamente e saiu.
      Sentado numa poltrona, o gerente lia uma revista.
      — Já vai, seu Isidoro?
      — Já — disse Samuel, entregando a chave. Pagou, conferiu o
troco em silêncio.
      — Até domingo que vem, seu Isidoro — disse o gerente.
      — Não sei se virei — respondeu Samuel, olhando pela porta; a noite caía.
      — O senhor diz isto, mas volta sempre — observou o homem,
rindo. Samuel saiu.
      Ao longo do cais, guiava lentamente. Parou, um instante, ficou olhando os guindastes recortados contra o céu avermelhado. Depois,
seguiu. Para casa."

SCLIAR, Moacyr. In: BOSI, Alfredo. O conto brasileiro contemporâneo. São Paulo: Cutrix, 1997

domingo, 14 de agosto de 2011

Aos pais



                                                   O Pai

                                     O pai, por que só trabalha?
                                     Era melhor pai em casa,
                                     Pai no jardim vendo rosa,
                                     Pai consertando o telhado,
                                     mas o pai trabalha fora.
                                     Era melhor pai passeando,
                                     no parque correndo junto,
                                     pai ensinando lição,
                                     pai vendo televisão.

                                     Mas o pai trabalha fora
                                     pra sustentar os meninos.
                                     — Pai por que você não canta?
                                     — E eu lá sou passarinho?

  In: PALLOTINI, Renata. Café com leite. São Paulo: Quinteto, 1988. p. 1
                                                 
                                                   
                  

sábado, 13 de agosto de 2011


  
 
  O caçador de borboletas

         Vladimir recebeu muitas prendas no Natal, entre livros, discos, legos, jogos de computador, mas gostou sobretudo do equipamento para caçar borboletas. O equipamento incluía uma rede, um frasco de vidro, algodão, éter, uma caixa de madeira com o fundo de cortiça, e alfinetes coloridos. O pai explicou-lhe que a caixa servia para guardar as borboletas. Matam-se as borboletas com o éter, espetam-se na cortiça, de asas estacadas, e dessa forma, mesmo mortas, elas duram muito tempo. É assim que fazem os colecionadores.
         Aquilo deixou-o entusiasmado. Ele gostava de insetos mas não sabia que era possível colecioná-los, como quem coleciona selos, conchas ou postais, talvez até trocar exemplares repetidos com os amigos.
          Nessa mesma tarde saiu para caçar borboletas. Foi para o matagal junto ao rio, atrás de casa, um lugar onde se juntavam insetos de todo o tipo. Já tinha apanhado cinco borboletas que guardara dentro do frasco de vidro, quando ouviu alguém cantar com uma voz de algodão doce – uma voz tão doce e tão macia que ele julgou que sonhava. Espreitou e viu uma linda borboleta, linda como um arco-íris, mas ainda mais colorida e luminosa. Sentiu o que deve sentir em momentos assim todo o caçador: sentiu que o ar lhe faltava, sentiu que as mãos lhe tremiam, sentiu uma espécie de alegria muito grande. Lançou a rede e viu a borboleta soltar-se num voo curto e depois debater-se, já presa, nas malhas de nylon. Passou a para o frasco e ficou um longo momento a olhar para ela.
          — Agora és minha – disse-lhe. — Toda a tua beleza me pertence.
          A borboleta agitou as asas muito levemente e ele ouviu a mesma voz que há instantes o encantara:
       — Isso não é possível – era a borboleta que falava. — Sabes como surgiram as borboletas? Foi há muito, muito tempo, na Índia. Vivia ali um homem sábio e bom, chamado Buda…
Vladimir esfregou os olhos:
          — Meu Deus! Estou a sonhar?
          A borboleta riu-se:
         — Isso não tem importância. Ouve a minha história. Buda, o tal homem sábio e bom, achou que faltava alegria ao ar. Então colheu uma mão cheia de flores e lançou-as ao vento e disse: “Voem!” E foi assim que surgiram as primeiras borboletas. A beleza das borboletas é para ser vista no ar, entendes? É uma beleza para ser voada.
       — Não! – disse Vladimir abanando a cabeça. — Eu sou um caçador de borboletas. As borboletas nascem, voam e morrem e se não forem colecionadores como eu, desaparecem para sempre.A borboleta riu-se de novo (um riso calmo, como um regato correndo, não era um riso de troça):
        — Estás enganado. Há certas coisas que não se podem guardar. Por exemplo, não podes guardar a luz do luar, ou a brisa perfumada de um pomar de macieiras. Não podes guardar as estrelas dentro de uma caixa. No entanto podes colecionar estrelas. Escolhe uma quando a noite chegar. Será tua. Mas deixa-a guardada na noite. É ali o lugar dela.
       Vladimir começava a achar que ela tinha razão.
      — Se eu te libertar agora – perguntou – tu serás minha?
      A borboleta fechou e abriu as asas iluminando o frasco com uma luz de todas as cores.
     — Já sou tua – disse – e tu já és meu. Sabes? Eu coleciono caçadores de borboletas.
    Vladimir regressou a casa alegre como um pássaro. O pai quis saber se ele tinha feito uma boa caçada. O menino mostrou-lhe com orgulho o frasco vazio:
     — Muito boa – disse. — Estás a ver? Deixei fugir a borboleta mais bela do mundo.


   José Eduardo Agualusa , Era uma vez - Revista Pais e Filhos, s/d

quarta-feira, 10 de agosto de 2011


                                            
                        A beleza total
 
    A beleza de Gertrudes fascinava todo mundo e a própria Gertrudes. Os espelhos pasmavam diante de seu rosto, recusando-se a refletir as pessoas da casa e muito menos as visitas. Não ousavam abranger o corpo inteiro de Gertrudes. Era impossível, de tão belo, e o espelho do banheiro, que se atreveu a isto, partiu-se em mil estilhaços.
      A moça já não podia sair à rua, pois os veículos paravam à revelia dos condutores, e estes, por sua vez, perdiam toda a capacidade de ação. Houve um engarrafamento monstro, que durou uma semana, embora Gertrudes houvesse voltado logo para casa.
      O senado aprovou lei de emergência, proibindo Gertrudes de chegar à Janela. A moça vivia confinada num salão em só penetrava sua mãe, pois o mordomo se suicidara com a foto de Gertrudes sobre o peito.
      Gertrudes não podia fazer nada. Nascera assim, este era o seu destino fatal:  a extrema beleza. E era feliz, sabendo-se incomparável. Por falta de ar puro, acabou sem condições de vida, e um dia cerrou os olhos para sempre. Sua beleza saiu do corpo e ficou pairando imortal. O corpo já então enfezado de Gertrudes foi recolhido ao jazigo, e a beleza de Gertrudes continuou cintilando no salão fechado a sete chaves.

           Carlos Drummond de Andrade, Contos Plausíveis

terça-feira, 9 de agosto de 2011

Reflexão



“Sempre se lembre que a pele se enruga, o cabelo se torna branco, os dias se transformam em anos, mas o importante não muda. A sua força e sua segurança não tem idade. O seu espírito é o espanador de qualquer teia de aranha. Atrás de cada linha de chegada, há uma partida. Atrás de cada engano, há outro desafio. Enquanto estiver viva,sinta-se viva. Se fizer algo diferente, volte a fazê-lo. Não viva de fotos amareladas. Siga em frente ainda que todos esperem que desista. Não deixe que se oxide o ferro que existe em você. Faça com que, em vez de pena, tenham respeito por você. Quando, devido à idade não puder correr,ande depressa. Quando não puder andar depressa, caminhe. Quando não puder caminhar, use a bengala. Mas não pare nunca!”

                                          Camille Claudel