FALTA DE REZA
Por
insuficiência de reza,
por
falsidade de crença
meu
anjo me culpou
e
vaticinou eterna penitência.
Mas
não ajoelho
nem
peço desculpa.
Não
quero um deus
que
vigie os vivos
e
peça contas aos mortos.
Um
deus amigo
que
me chame por tu
e
que espere por mim
para
um copo de riso e abraços:
esse
é o deus que eu quero ter.
Um
deus
que
nem precise de existir.
A COISA
O
silêncio é o modo
como
o marido habita a casa.
Vencida
a porta, ao final do dia,
o
homem assume porte e posses.
A
mesa é onde os seus cotovelos
derramam
milenares cansaços.
Nesse
cotovelório
vai
trocando vida por idade.
Partilha
a medonhez dos bichos:
medo
do silêncio,
mais
pavor ainda das palavras.
Para
a mulher,
Porém,
ele não é senão um menino
no
aguardo de um agrado.
Em
redor do silêncio
ela
rodopia, sem voz, sem cheiro, sem rosto.
Em
solidão,
o
homem come,
merecedor
do que lhe é servido.
Depois,
bebe
como se fosse bebido,
tragado
pelo vazio dos desertos.
Dono
do seu despovoado,
então,
ele a agride, com ferocidade de bicho.
A
mulher se estilhaça no soalho,
sombrio
retrato da parede tombado.
No
leito,
já
servido o marido,
as
lágrimas vão colando os seus fragmentos.
E
a esposa volta a ser coisa.
MIA COUTO
Fonte : Poemas
escolhidos / Mia Couto ; apresentação José Castello - 1ª- ed. - São Paulo : Companhia das Letras, 2016.
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