terça-feira, 8 de outubro de 2019

O poeta Ivan Junqueira






Poemas de Ivan Junqueira




Tristeza

Esta noite eu durmo de tristeza.
(O sono que eu tinha morreu ontem
queimado pelo fogo de meu bem.)
O que há em mim é só tristeza,
uma tristeza úmida, que se infiltra
pelas paredes de meu corpo
e depois fica pingando devagar
como lágrima de olho escondido.

(Ali, no canto apagado da sala,
meu sorriso é apenas um brinquedo
que a mãozinha da criança quebrou.)

 E o resto é mesmo tristeza.

 (de Os Mortos)


Elegia Íntima

Minha mãe chorando no fundo da noite
rachou o silêncio do quarto adormecido.
Meu pai olhava o escuro e não dizia nada,
Um relógio preto gotejava barulho.

Lá fora o vento lambia as espáduas do céu.

Minha mãe chorando no fundo da noite
Apunhalou o sono de Deus.


(idem)


 Madrigal

Azul e pontual,
o céu acordou:

cada aurora
em seu horizonte.

Mas a pergunta,
Como um gládio

em riste, cravou
seu aço no vazio

— e lá, imóvel, ficou
esperando a resposta

que não raiou.


(idem)



Hoje

 A sensação oca de que tudo acabou
o pânico impresso na face dos nervos
o solitário inverno da carne
a lágrima, a doce lágrima impossível...
e a chuva soluçando devagar
sobre o esqueleto tortuoso das árvores

 (idem)

Haicai

Na gaiola jaz
o pássaro
sem espaço

(de Opus Descontínuo)


O Poema

Que será o poema,
essa estranha trama
de penumbra e flama
que a boca blasfema?

Que será, se há lama
no que escreve a pena
ou lhe aflora à cena
o excesso de um drama?

Que será o poema:
uma voz que clama?
Uma luz que emana?
Ou a dor que algema?

(de A Sagração dos Ossos)



           Talvez o vento saiba

Talvez o vento saiba dos meus passos,
das sendas que os meus pés já não abordam,
das ondas cujas cristas não transbordam
senão o sal que escorre dos meus braços.
As sereias que ouvi não mais acordam
à cálida pressão dos meus abraços,
e o que a infância teceu entre sargaços
as agulhas do tempo já não bordam.
Só vejo sobre a areia vagos traços
de tudo o que meus olhos mal recordam
e os dentes, por inúteis, não concordam
sequer em mastigar como bagaços.
Talvez se lembre o vento desses laços
que a dura mão de Deus fez em pedaços.

           Ivan Junqueira já foi chamado, com inteira justiça, de “o poeta do pensamento”. Carioca, nascido em 3 de novembro de 1934, Ivan Nóbrega Junqueira é também um premiado ensaísta (O encantador de serpentes, 1987; O signo e a sibila, 1993; O Fio de Dédalo, 1998), crítico literário de incomum dignidade humanística e tradutor de T.S.Eliot, Marguerite Yourcenar, Marcel Proust, Dylan Thomas e Charles Baudelaire, de quem verteu para nosso idioma o inigualável poema As Flores do Mal.

Sua extensa obra poética (de Os Mortos, 1964, a Poemas Reunidos, 1999), preocupada com questões políticas e metafísicas, abriu-lhe as portas da Academia Brasileira de Letras, onde ocupou a Cadeira nº 37, patroneada pelo poeta inconfidente Tomás Antônio Gonzaga, e de que foi Presidente no biênio 2003-05.

JUNQUEIRA, Ivan.  Essa música  2009-2013.   Rio de Janeiro: Rocco, 2014.   95 p.  14x21? cm  “Orelha” do livro por Marco Lucchesi.  ISBN 978-85-325-2924-4   “ Ivan Junqueira “  Ex. bibl. Antonio Miranda

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