Poemas de
Ivan Junqueira
Tristeza
Esta noite eu durmo
de tristeza.
(O sono que eu tinha
morreu ontem
queimado pelo fogo
de meu bem.)
O que há em mim é só
tristeza,
uma tristeza úmida,
que se infiltra
pelas paredes de meu
corpo
e depois fica
pingando devagar
como lágrima de olho
escondido.
(Ali, no canto apagado da sala,
meu sorriso é apenas
um brinquedo
que a mãozinha da
criança quebrou.)
E o resto é mesmo tristeza.
(de Os Mortos)
Elegia Íntima
Minha mãe chorando
no fundo da noite
rachou o silêncio do
quarto adormecido.
Meu pai olhava o
escuro e não dizia nada,
Um relógio preto
gotejava barulho.
Lá fora o vento
lambia as espáduas do céu.
Minha mãe chorando
no fundo da noite
Apunhalou o sono de
Deus.
(idem)
Madrigal
Azul e pontual,
o céu acordou:
cada aurora
em seu horizonte.
Mas a pergunta,
Como um gládio
em riste, cravou
seu aço no vazio
— e lá, imóvel,
ficou
esperando a resposta
que não raiou.
(idem)
Hoje
A sensação oca de que tudo acabou
o pânico impresso na
face dos nervos
o solitário inverno
da carne
a lágrima, a doce
lágrima impossível...
e a chuva soluçando
devagar
sobre o esqueleto
tortuoso das árvores
(idem)
Haicai
Na gaiola jaz
o pássaro
sem espaço
(de Opus
Descontínuo)
O Poema
Que será o poema,
essa estranha trama
de penumbra e flama
que a boca blasfema?
Que será, se há lama
no que escreve a
pena
ou lhe aflora à cena
o excesso de um
drama?
Que será o poema:
uma voz que clama?
Uma luz que emana?
Ou a dor que algema?
(de A Sagração dos
Ossos)
Talvez o vento saiba
Talvez o vento saiba
dos meus passos,
das sendas que os
meus pés já não abordam,
das ondas cujas
cristas não transbordam
senão o sal que
escorre dos meus braços.
As sereias que ouvi
não mais acordam
à cálida pressão dos
meus abraços,
e o que a infância
teceu entre sargaços
as agulhas do tempo
já não bordam.
Só vejo sobre a
areia vagos traços
de tudo o que meus
olhos mal recordam
e os dentes, por
inúteis, não concordam
sequer em mastigar
como bagaços.
Talvez se lembre o
vento desses laços
que a dura mão de
Deus fez em pedaços.
Ivan Junqueira já foi chamado, com inteira justiça, de “o poeta do pensamento”. Carioca, nascido em 3 de novembro de 1934, Ivan Nóbrega Junqueira é também um premiado ensaísta (O encantador de serpentes, 1987; O signo e a sibila, 1993; O Fio de Dédalo, 1998), crítico literário de incomum dignidade humanística e tradutor de T.S.Eliot, Marguerite Yourcenar, Marcel Proust, Dylan Thomas e Charles Baudelaire, de quem verteu para nosso idioma o inigualável poema As Flores do Mal.
Sua extensa obra poética (de Os Mortos, 1964, a Poemas Reunidos, 1999), preocupada com questões políticas e metafísicas, abriu-lhe as portas da Academia Brasileira de Letras, onde ocupou a Cadeira nº 37, patroneada pelo poeta inconfidente Tomás Antônio Gonzaga, e de que foi Presidente no biênio 2003-05.
JUNQUEIRA, Ivan. Essa música 2009-2013. Rio de Janeiro: Rocco, 2014. 95 p. 14x21? cm “Orelha” do livro por Marco Lucchesi. ISBN 978-85-325-2924-4 “ Ivan Junqueira “ Ex. bibl. Antonio Miranda