“O
Arco e a Lira”
A
poesia é conhecimento, salvação, poder, abandono. Operação capaz de transformar
o mundo, a atividade poética é revolucionária por natureza; exercício
espiritual, é um método de libertação interior. A poesia revela este mundo;
cria outro. Pão dos eleitos; alimento maldito. Isola; une. Convite à viagem;
regresso à terra natal. Inspiração, respiração, exercício muscular. Súplica ao
vazio, diálogo com a ausência, é alimentada pelo tédio, pela angústia e pelo
desespero. Oração, litania, epifania, presença. Exorcismo, conjuro, magia.
Sublimação, compensação, condensação do inconsciente. Expressão histórica de
raças, nações, classes. Nega a história: em seu seio resolvem-se todos os
conflitos objetivos e o homem adquire, afinal, a consciência de ser algo mais
que passagem. Experiência, sentimento, emoção, intuição, pensamento
não-dirigido. Filha do acaso; fruto do cálculo. Arte de falar em forma
superior; linguagem primitiva. Obediência às regras; criação de outras.
Imitação dos antigos, cópia do real, cópia de uma cópia da Idéia. Loucura,
êxtase, logos. Regresso à infância, coito, nostalgia do paraíso, do inferno, do
limbo. Jogo, trabalho, atividade ascética. Confissão. Experiência inata. Visão,
música, símbolo. Analogia: o poema é um caracol onde ressoa a música do mundo,
e métricas e rimas são apenas correspondências, ecos, da harmonia universal.
Ensinamento, moral, exemplo, revelação, dança, diálogo, monólogo. Voz do povo,
língua dos escolhidos, palavra do solitário. Pura e impura, sagrada e maldita,
popular c minoritária, coletiva e pessoal, nua e vestida, falada, pintada,
escrita, ostenta todas as faces, embora exista quem afirme que não tem nenhuma:
o poema é uma máscara que oculta o vazio, bela prova da supérflua grandeza de
toda obra humana!
Como
não reconhecer em cada uma dessas fórmulas o poeta que as justifica e que, ao
encarná-las, lhes dá vida? Expressões de algo vivido e padecido, não temos
outro remédio senão aderirmos a elas - condenados a abandonar a primeira pela
segunda e esta pela seguinte. Sua própria autenticidade mostra que a
experiência que justifica cada um desses conceitos os transcende. Será preciso,
portanto, interrogar os testemunhos diretos da experiência poética. A unidade
da poesia só pode ser apreendida através do trato desnudo com o poema.
Um
poema é uma obra. A poesia se polariza, se congrega c se isola num produto
humano: quadro, canção, tragédia. O poético é poesia em estado amorfo; o poema é
criação, poesia que se ergue. Só no poema a poesia se recolhe e se revela
plenamente. É lícito perguntar ao poema pelo ser da poesia, se deixamos de
concebê-lo como uma forma capaz de se encher com qualquer conteúdo. O poema não
é uma forma literária, mas o lugar de encontro entre a poesia e o homem.
O
poema é um organismo verbal que contém, suscita ou emite poesia. Forma e
substância são a mesma coisa. Mal desviamos os olhos do poético para fixá-los
no poema, aparece-nos a multiplicidade de formas que assume esse ser que
pensávamos único. Como nos apoderarmos da poesia se cada poema se mostra como
algo diferente e irredutível?
A
forma mais alta da prosa é o discurso, no sentido estrito dessa palavra. No
discurso as palavras aspiram a se constituir em significado unívoco. Esse
trabalho implica reflexão e análise. Ao mesmo tempo introduz um ideal
inatingível, já que a palavra se nega a ser mero conceito, significado sem
outra coisa mais. Cada palavra – à parte suas propriedades físicas - encerra
uma pluralidade de sentidos. Assim, a atividade do prosador se exerce contra a
natureza própria da palavra.
A
palavra, finalmente em liberdade, mostra todas as suas entranhas, todos os seus
sentidos e alusões, como um fruto maduro ou como um foguete no momento de
explodir no céu. O poeta põe em liberdade sua matéria. O prosador aprisiona-a.
O
poema, sem deixar de ser palavra e história, transcende a história. Sob
condição de examinar com mais atenção em que consiste esse ultrapassar a
história, podemos concluir que a plural idade de poemas não nega, antes afirma,
a unidade da poesia.
Cada
poema é único. Em cada obra lateja, com maior ou menor intensidade, toda a
poesia. Portanto, a leitura de um só poema nos revelará, com maior certeza do
que qualquer investigação histórica ou filológica, o que é a poesia. Mas a
experiência do poema - sua recriação através da leitura ou da recitação -
também ostenta uma desconcertante pluralidade e heterogenia. Quase sempre a
leitura se apresenta como a revelação de algo alheio à poesia propriamente
dita.
Para
alguns o poema é a experiência do abandono; para outros, do rigor. Cada leitor
procura algo no poema. E não é insólito que o encontre: já o trazia dentro de
si.
Todos já fomos crianças. Todos já amamos. O amor é um estado
de reunião e participação
aberto aos homens: no ato amoroso a consciência é como a onda que, vencido o
obstáculo, antes de se desmanchar, ergue-se numa plenitude na qual tudo - forma
e movimento, impulso para cima e força da gravidade - alcança um equilíbrio sem
apoio, sustentado em si mesmo. Quietude do movimento. E do mesmo modo que
através de um corpo amado entrevemos uma vida mais plena, mais vida que a vida,
através do poema vislumbramos o raio fixo da poesia. Esse instante contém todos
os instantes. Sem deixar de fluir, o tempo se detém, repleto de si.
Objeto
magnético, secreto lugar de encontro de forças contrárias, graças ao poema
podemos chegar à experiência poética. O poema é uma possibilidade aberta a
todos os homens, qualquer que seja seu temperamento, seu ânimo ou sua
disposição. No entanto, o poema não é senão isto: possibilidade, algo que só se
anima ao contacto dc um leitor ou de um ouvinte. Há uma característica comum a
todos os poemas, sem a qual nunca seriam poesia: a participação. Cada vez que o
leitor revive realmente o poema, atinge um estado que podemos, na verdade,
chamar de poético. A experiência pode adotar esta ou aquela forma, mas é sempre
um ir além de si, um romper os muros temporais, para ser outro. Tal como a
criação poética, a experiência do poema se dá na história, é história e, ao
mesmo tempo, nega a história.
O
poema é mediação: graças a ele, o tempo original, pai dos tempos, encarna-se
num momento. A sucessão se converte em presente puro, manancial que se alimenta
a si próprio e transmuta o homem. A leitura do poema mostra grande semelhança
com a criação poética. O poeta cria imagens, poemas; o poema faz do leitor
imagem, poesia.
E
ainda guardamos viva a sensação de alguns minutos de tal maneira plenos que se
transformaram em tempo transbordado, maré alta que rompeu os diques da sucessão
temporal. Pois o poema é via de acesso ao tempo puro, imersão nas águas
originais da existência. A poesia não é nada senão tempo, ritmo perpetuamente
criador.
“O
Arco e a Lira” de Octavio Paz. Tradução de Olga Savary. Ed. Nova Fronteira, RJ,
1982. (Coleção Logos)
Imagem: https://www.google.com.br/searchq=imagem+de+poesia+Octavio+Paz