QUERIDO
AMANHÃ
Sim, dezembro chegou e
já vai sem tardar. O mês das finalizações, das limpezas e das preparações para
a novidade que se avizinha. Suposta data para reconciliações, reencontros,
afetividades suaves, religiosidades empoeiradas e ânimos calmos; o simbólico
mês da passagem para um suposto ano novo. Algumas notas sobre essa sedução em
relação ao amanhã.
O
modo de contar o passar do tempo não é universal. Diferentes povos e religiões
ajustam seus compassos a partir de diferentes calendários. No calendário
gregoriano, estamos no ano de 2016. No calendário chinês, com seus ciclos de 12
anos, estamos em 4713. No calendário judaico, em 5776. No islâmico, em 1437.
Seja como for, partindo
de qualquer mecanismo: solar, lunar e/ou histórico, o dia seguinte é esse tempo
que chega/passa, limita, potencializa e/ou contamina nossos sonhos, ideias,
planejamentos, forças pra fazer o novo, olhares para vislumbrar o amanhã mais
sereno.
Mário Quintana trouxe
poesia sobre esse olhar: “a vida é o dever que nós trouxemos para fazer em
casa. Quando se vê, já são seis horas! Quando se vê, já é sexta-feira! Quando
se vê, já é natal ... Quando se vê, já
terminou o ano ... Quando se vê perdemos
o amor da nossa vida. Quando se vê passaram 50 anos! Agora é tarde demais para
ser reprovado...”.
Em nome do amanhã,
deitamos nossas intranquilidades à espera do novo sol-guia para nossas
tempestades. Alguns até vão além, trabalham com o depois-de-amanhã, afinal:
“não deixe para amanhã o que você pode fazer depois de amanhã”. Risos...
Em nome da ideia, a
gente promete parar de fumar, dormindo com um cigarro picado na orelha. A gente
promete esquecer daquela (e), deixando a (o) amada (o) como fotografia na tela
de proteção do celular. A gente promete não fazer dívida, gastando o último
crédito do cartão na fila da Riachuelo. A gente promete usar camisinha, quando
até sem cueca se anda deixando o banco
do passageiro do carro levemente deitado.
Planos e desejos
honestos também: que todas as feridas possam ser curadas; as obras mal
construídas, abandonadas; os prazeres, intensamente vividos; os saberes,
plenamente absorvidos; as lágrimas, inteiramente escorridas.
E assim o tempo passa,
trazendo o dia seguinte, que pode acabar sendo o hoje contaminado pelos
devaneios reincidentes do amanhã. Dito isso, tenho que concordar com a
afirmação supostamente atribuída a Charles Chaplin: "o importante é não
fazer do amanhã o sinônimo de nunca".
Guimarães Rosa até nos
deu a pista/fôlego: “a vida é assim: esquenta, esfria, aperta e daí afrouxa,
sossega e depois desinquieta, o que ela quer da gente é coragem”. Coragem para enfrentar os
quilômetros adiante e convencer os guardiões da entrada; bravura pra ir lapidando essa tal liberdade do amanhã,
essa amplitude do “passarinho voando com gaiola e tudo”.
Afinal, resgatando
Svetlana Alexievich, em discurso por ocasião do prêmio Nobel de literatura de
2015: “a liberdade não é um feriado, como antes imaginávamos. Ela é uma
estrada. Uma longa estrada”.
Sigo refletindo daqui,
soando pretensamente falso com a ideia final desse post, já que cito um texto
bíblico, do famoso e pouco seguido Sermão da Montanha: “não vos preocupeis,
pois, com o dia de amanhã: o dia de amanhã terá as suas preocupações próprias.
A cada dia basta o seu cuidado” (Mt 6-34).
Intensidade para o hoje
e para os amanhãs vindouros. Um brinde!
CÉSAR GANDHI
Brasiliense por resistência. Pai de uma
menina-flor. Mestrando em Ciências Sociais no ICS/CEPPAC/UnB. Considera o mundo
um lugar rochoso, mas não se cansa de ir derramando água quente por onde passa,
na tentativa de torná-lo mais maleável.
(In Obvious magazine)
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