sábado, 20 de agosto de 2011

                                 



                                     Pausa

      Às sete horas o despertador tocou. Samuel saltou da cama, correu para o banheiro, fez a barba e lavou-se. Vestiu-se rapidamente e sem ruído. Estava na cozinha, preparando sanduíches, quando a mulher apareceu, bocejando:
      — Vais sair de novo, Samuel?
      Fez que sim com a cabeça. Embora jovem, tinha a fronte calva; mas as sobrancelhas eram espessas, a barba, embora recém feita, deixava ainda no rosto uma sombra azulada. O conjunto era uma máscara escura.
      — Todos os domingos tu sais cedo — observou a mulher com azedume na voz.
      — Temos muito trabalho no escritório — disse o marido, secamente.
      Ela olhou os sanduíches:
      — Por que não vens almoçar?
      — Já te disse: muito trabalho. Não há tempo. Levo um lanche.
      A mulher coçava a axila esquerda. Antes que voltasse à carga, Samuel pegou o chapéu:
      — Volto de noite.
      As ruas ainda estavam úmidas de cerração. Samuel tirou o carro da garagem. Guiava vagarosamente, ao longo do cais, olhando os guindastes, as barcaças atracadas.
      Estacionou o carro numa travessa quieta. Com o pacote de sanduíches debaixo do braço, caminhou apressadamente duas quadras.
      Deteve-se ao chegar a um hotel pequeno e sujo. Olhou para os lados e entrou furtivamente. Bateu com as chaves do carro no balcão, acordando um homenzinho que dormia sentado numa poltrona rasgada. Era o gerente. Esfregando os olhos, pôs-se de pé.
      — Ah! Seu Isidoro! Chegou mais cedo hoje. Friozinho bom este, não é? A gente...
      — Estou com pressa, seu Raul! — atalhou Samuel.
      — Está bem, não vou atrapalhar. O de sempre. — Estendeu a
chave. Samuel subiu quatro lançes de uma escada vacilante.
Ao chegar ao último andar, duas mulheres gordas, de chambre
floreado, olharam-no com curiosidade:
      — Aqui, meu bem! — uma gritou, e riu: um cacarejo curto.
      Ofegante, Samuel entrou no quarto e fechou a porta à chave. Era um aposento pequeno: uma cama de casal, um guarda roupa
De pinho; a um canto, uma bacia cheia d'água, sobre um tripé. Samuel correu as cortinas esfarrapadas, tirou do bolso um despertador de viagem, deu corda e colocou-o na mesinha de cabeceira. Puxou a colcha e examinou os lençóis com o cenho franzido; com um suspiro, tirou o casaco e os sapatos, afrouxou a gravata. Sentado na cama, comeu vorazmente quatro sanduíches. Limpou os dedos no papel de embrulho, deitou-se e fechou os olhos.   Dormir.
      Em pouco, dormia. Lá embaixo, a cidade começava a mover-se: os automóveis buzinando, os jornaleiros gritando, os sons longínquos.
      Um raio de sol filtrou-se pela cortina, estampou um círculo luminoso no chão carcomido. Samuel dormia; sonhava. Nu, corria por uma planície imensa, perseguido por índio montado a cavalo. No quarto abafado ressoava o galope. No planalto da testa, nas colinas do ventre, no vale entre as pernas, corriam. Samuel mexia-se e resmungava. Às duas e meia da tarde sentiu uma dor lancinante nas costas. Sentou-se na cama, os olhos esbugalhados: o índio acabava de trespassá-lo com a lança. Esvaindo-se em sangue, molhado de suor, Samuel tombou lentamente; ouviu o apito soturno de um vapor. Depois, silêncio.
Às sete horas o despertador tocou. Samuel saltou da cama, correu para a bacia, lavou-se. Vestiu-se rapidamente e saiu.
      Sentado numa poltrona, o gerente lia uma revista.
      — Já vai, seu Isidoro?
      — Já — disse Samuel, entregando a chave. Pagou, conferiu o
troco em silêncio.
      — Até domingo que vem, seu Isidoro — disse o gerente.
      — Não sei se virei — respondeu Samuel, olhando pela porta; a noite caía.
      — O senhor diz isto, mas volta sempre — observou o homem,
rindo. Samuel saiu.
      Ao longo do cais, guiava lentamente. Parou, um instante, ficou olhando os guindastes recortados contra o céu avermelhado. Depois,
seguiu. Para casa."

SCLIAR, Moacyr. In: BOSI, Alfredo. O conto brasileiro contemporâneo. São Paulo: Cutrix, 1997

Nenhum comentário:

Postar um comentário